13 de outubro de 2004

Convocatória

Clube dos Poetas Vivos
Lembram-se?

«Pensa nisto, há centenas de grandes obras a germinar nos cérebros de centenas de grandes homens, mas a trágica verdade é que nenhuma dessas centenas de grandes obras será jamais escrita. E o mundo continua.»
William Somerset Maugham

Já lá vão longos meses de inactividade, desde que o último rendez-vous transbordante de poesia teve lugar no Café Tertúlia – cenário que é, por si só, poetizante e poetizável. Para quem não se recorda, estas noites revelavam o retrato de uma geração para a qual a palavra poesia está semanticamente próxima de revolução – uma breve hesitação entre a memória de acontecimentos não presenciados e acção realizável.
Entretanto, a belle époque do Clube dos Poetas Vivos foi aparentemente esquecida e a criatividade encontra-se em estado latente. Se não conhecêssemos o paradeiro actual dos personagens, seríamos levados a confirmar a teoria de que, por trágica ironia, o destino fatal dos poetas é a deambulação estéril, o quotidiano errante, a consolidação de um carácter diletante entre frivolidades boémias. À excepção de tais frivolidades boémias, a descrição não corresponde ao perfil dos nossos autores. E se, ainda aos tropeções de entusiasmo adolescente, vão ensaiando já uma trajectória mais linear, certamente cederão por vezes a uma breve paragem contemplativa. O tempo para um café, um cigarro e um verso, meia dúzia de notas imprevistas na pauta, um apontamento situacional policromático – cinco minutos de nostalgia. O que há de comum entre estes encontros e a sequência de curtas-metragens recentemente recuperada e concluída por Jim Jamursch sob o título bastante apropriado de Coffee and Cigarettes? Para além do café e dos cigarros, o paradoxo de uma continuidade interrompida pelo acaso.Feito o ponto da situação, é necessário protestar activamente contra o veredicto de Somerset Maugham – porque, se há efectivamente grandes obras a germinar, a única coisa que poderá impedir que sejam escritas é a ociosidade.
in A Voz de Alcobaça, 30.Setembro.2004

12 de outubro de 2004

Necrologia

Um cadáver descomposto, com o nó da gravata descuidado e um olhar desiludido, cheira a terra molhada. Se eles exumam as almas ao cobrirem os corpos com flores, eu ignoro a putrefacção com o cheiro da terra molhada. Levantei-me e afinal era eu o cadáver, e mais o início de uma história pouco promissora.
Fantasiar sobre cadáveres descompostos é talvez um hábito inesperado para um indivíduo como eu. Ninguém diria – ou, pelo contrário, devem ser registados alguns eventuais indícios ou, simplesmente, acontecimentos intrigantes. Quando aprendi a ler, como todos os miúdos, cansado de frases elementares e pouco prováveis como “o pato papa o pópó”, tentei a folha do jornal.
Transição mal sucedida. De início, percorri em vão as páginas, até encontrar um grafismo familiar. Pedro, que é o meu nome, num rectângulo com uma cruz, uns números e umas poucas palavras, entre as quais “Pedro”, que é o meu nome. Terá surgido assim a fascinação pela necrologia. E daí passei à necrofilia.
Ela acordou e eu
fingi que dormia, não gosto que ela saiba que estou acordado quando ela acorda, é uma sensação embaraçosa de tão reconfortante. À tarde mandei-lhe flores, um bilhete (“Nem dei por saíres hoje de manhã.”, em vez de “Tenho saudades tuas.”).