26 de abril de 2006

O Principezinho (VIII)

esta citação contém uma migalhinha de biscoito de chocolate com smarties.
e uma língua de gato!
«E ela, que demorara tanto tempo a arranjar-se, bocejou e disse:
- Ai! Ainda mal acordei... Peço-lhe que me perdoe... Estou toda despenteada...
Mas o principezinho não pode conter a admiração:
- Você é tão bonita!
- Lá isso é verdade... - respondeu a flor, com uma voz mansinha. - E nasci ao mesmo tempo que o Sol...
O principezinho suspeitou logo que a modéstia não devia ser o seu forte; mas era tão enternecedora!
- Creio que está ma hora do pequeno-almoço - disse, daí a pouco. - É capaz de ter a bondade de pensar na minha pessoa?
E o principezinho, todo atrapalhado, fora buscar um regador de água fresca para servir a flor.
Depressa começara portanto a atormentá-lo com a sua vaidade, as suas susceptibilidades, os seus caprichos. Um belo dia, por exemplo, estando a conversar com o principezinho acerca dos seus quatro espinhos, disse:
- Se os tigres, com aquelas garras, pensam que me metem medo... Cá os espero!»
Antoine de Saint-Exupéry, in O Principezinho

21 de abril de 2006

Gaivota

A propósito da peça «A Gaivota», de Tchekov
em cena no Teatro do Bairro Alto pelo Teatro da Cornucópia
A despropósito de um pássaro-de-papel-sem-nome

nos bastidores

«Quer parecer-me que esta gaivota também é um símbolo, mas não o entendo, desculpe-me. Sou demasiado simples para poder entendê-lo

Nina
havia nessa peça uma mulher que trajava sempre de preto, por estar de luto com a vida. uma porta aberta deixa entrar a música que o édipo-escritor tacteia no piano. a mãe da pequena (enquanto afaga os lençóis do velho que, por leviandade, quer viver em vez de esperar morrer) diz-lhe que ele só toca quando está triste. mas é só o percurso destes dedos que a faz dançar.
uma gaivota à beira de um lago.
passa um homem que nada mais tem para fazer, e atira.
essa mãe era a mulherzinha roliça de casamento infeliz (esposa do feitor da quinta, cuja preocupação mor era zelar pela boa saúde dos seus cavalos) e o homem que, por ser médico, não pode fugir às mulheres. 'todos tão nervosos'.
um pássaro de papel à beira de um copo.
fica um rapaz que tem outras coisas em que pensar, e amachuca-o.
para dentro de uns olhos verdes. 'não, não era nada disto'. ela trouxe-o com ele? para dentro da mala de uns olhos verdes. era assim não era? esse pássaro não tem nome porque não durou mais do que alguns instantes, diz ele. dizem elas que, embora o pássaro per se possa não ter persistido, aquele da fotografia tem uma identidade. repetindo a linha de pensamento ainda não concluída, é como a diferença entre o objecto real e a representação mental. 'não, não era nada disto'.

19 de abril de 2006

Dei por mim

dei por mim a pensar nessa manhã no jardim botânico, em que se desorganizou no meu quadrilátero-de-linguajar uma sucessão de palavras que talvez fizessem algum sentido entre si se copuladas por vocábulos que normalizassem o enquadramento sintáctico. mais tarde, viria a ler sobre o método psicanalítico na corrente surrealista.
dei por mim em cima da tua cama.
dei por mim ao fundo das tuas escadas, a misturar o rodopio à volta do meu umbigo com o saracoteio dos meus tímpanos (não parava de chover lá fora).
dei por mim a escrever-te uma frase que ainda hoje me comove. mas já não me lembro bem. começava assim: «tenho os pés cobertos de frio»...

16 de abril de 2006

Aqui

não quero estar aqui. é uma formulação simples, não achas? esta é a minha casa, esta é a minha sala, esta é a minha mesa e esta é a minha cadeira. no entanto o meu olhar esguelha-se à procura de pontos de fuga. há uma lantejoula no teu riso que transborda delicado no ar e se despeja grotesco no meu tímpano. não quero estar aqui. as coisas estão fora do sítio, não pode ser. já te disse: quero a asa da chávena voltada para o meu lado direito, o torrão de açúcar e a colher do esquerdo (bem sabes que não ponho açúcar, mas olho para o torrão enquanto o chá arrefece). é gente a mais. não quero estar aqui. quero alguém que critique exaustivamente a minha escrita e tu nem tens tempo para me ler.

Weltanschauung

«A partir do momento em que se abandona o domínio próprio da psicanálise, a partir sobretudo do momento em que se tenta aplicá-la aos problemas sociais, faz-se dela uma Weltanschauung, uma concepção do mundo; ela assume então a forma de sistema psicológico, de sistema que, contrariamente ao marxismo, preconiza o reino da razão e pretende melhorar a existência social através de uma regulamentação racional das relações humanas e de uma educação tendente para um domínio consciente da vida pulsional. Este racionalismo utópico - que revela entretanto uma concepção individualista do fenómeno social - não é nem original nem revolucionario, além de que ultrapassa as atribuições da psicanálise. Segundo a própria definição do seu fundador, esta é apenas um método psicológico que, com meios científicos, procura descrever e explicar a vida psíquica, considerada como um domínio particular da natureza. Não sendo um sistema filosófico (Weltanschauung) nem sendo capaz de engendrar um, a psicanálise não poderia substituir nem completar a concepção materialista da história. Ciência natural, ela não tem nada de comum com as concepções históricas de Marx.*»
Nota de 1934: O que não quer dizer que os conhecimentos analíticos não impliquem consequências sociais. (...)»
Wilhelm Reich, in Materialismo Dialéctico e Psicanálise

13 de abril de 2006

Menina Adélia

«(...) o amor é tão perigoso que devia ser proibido e eu não quero nada com o amor antes quero ir para França e ter carro do que andar para aí com o rabo a arder sentada em almofadas como a menina Adélia (...)»
Luís de Stau Monteiro, «O Amor», in Redacções da Guidinha

12 de abril de 2006

Interlunário

de acordo.
por agora, a invenção do amor suicida e da dor insuportável é, ainda, o agente poetizante por excelência.
o poema - o álcool da noite boémia e interlunar.
28 de Dezembro de 2002

10 de abril de 2006

(Outro) Abat-Jour

"uma ideia pré-concebida" (com destinatária)

9 de abril de 2006

Vértice

«A Gallimard pôs à venda o 3º tomo de L'Idiot de la famille, estudo sobre a vida e a obra de Gustave Flaubert que é a soma de mais de vinte anos de investigação científica sobre o autor de Madame Bovary, levada a cabo pelo filósofo Jean-Paul Sartre. Uma pirâmide psico-sociológica que é a testemunha do fôlego imenso do seu autor e da sua imperecível inteligência. Para os que supunham (ou pretendiam, por razões diversas) Jean-Paul Sartre acabado e apagado, esta extraordinária bio-bibliografia (interior e exterior, espiritual e mundana, privada e familiar) do pai de Salambô pelo profeta do existencialismo, assume a força, e o valor, de uma tremenda bofetada. Um conselho: releiam G. Flaubert depois de terem lido Sartre. (...)»

Campos, A. Crónicas parisienses - IX bis.
In Vértice; Volume XXXIII - Números 350-351 Março-Abril - Coimbra, 1973

Balada de Moscovo

ou História de Adultos Contada a uma Criança
ou Esquizofrenia

lamento, não posso continuar a ser a tua amante russa. sou uma matriosca e as outras seis de mim, que são sucessivamente mais pequenas e parasitam o meu mundo interior, estão em total desacordo - comigo e umas com as outras. a mais pequena, que é também a mais irrequieta e reinvindicativa, tem ciúmes porque as tuas gentilezas e os teus mimos só contemplam as camadas mais externas. a outra a seguir, que é nervosa e caladinha, inveja a terceira por conseguir zangar-se contigo. a do meio é virtuosa e, por isso, desinteressante. a seguinte confunde o seu lugar na segunda tópica freudiana com a posição que realmente ocupa neste organismo de barro pintado. a penúltima chora. esta outra, a última, mostra-se, e mostra-se sempre o contrário das outras, que não pode ser porque tem que proteger. lamento, mas não posso continuar a ser a tua amante russa.

8 de abril de 2006

Objecto e Objectiva

ela diz que alguém lhe disse que os homens amam e as mulheres são amadas. eu respondo-lhe que andam para aí umas mulheres de má vida que preferem tirar fotografias a deixarem-se fotografar.
jogavas às escondidas quando eras miúda? não eras sempre tu a esconder-te, pois não? hoje sou eu a contar até dez. hei-de encontrar o miúdo, vais ver. (o hábito secular de ocultar os tornozelos e outras curvinhas do ser, revelando as partes que só sugerem mas não mostram, induz-nos, de facto, a não procurar - mas, que diabo, fomos nós que inventámos os esconderijos e só nós é que podemos reconhecê-los.) hei-de encontrar o miúdo, vais ver. aposto que está entre duas circunvoluções - só não sei quais - a rir-se de mim por pensar ter vislumbrado as mãos dele na sombra de umas asas de papel. mas é um riso que me devolve a mim antes de chegar ao dez.
NOTA: também em Salvador Dalí podemos observar a integração de conceito, objecto real e elaboração mental.

7 de abril de 2006

4 Razões para Gostar

não gostava particularmente de pessoas, nem de animais, nem de coisas inanimadas - moléculas orgânicas ou inorgânicas, pinturas ou esculturas, garfos ou facas. também não gostava de regimes políticos - mas sim das teorias subjacentes. gostava de não gostar, em última análise, de nada - interrogava-se por que razão dizia o outro que « gostava de gostar de gostar ». mas gostava de estar apaixonada por homens mais velhos e casados, ou permanentemente em viagem, ou sem abrigo nem lei, ou impossíveis por qualquer outra razão. e de dormir enrolada sobre si mesma, a fabricar sonhos que nem sei.

3 de abril de 2006

Terror

versos de Sophia cruzam-se numa ilha imaginária que (não sei se) quero afundar. terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo onde tudo nos mente e nos separa há muitas coisas que eu quero ver porque os outros se compram e se vendem e os seus gestos dão sempre dividendo porque os outros são hábeis mas tu não. e depois alguma coisa que pensei, escrevi e não disse. hei-de falar de ti como os cravos me falam de Abril.
um « - não pode ser.» veste-se sempre de mim razões - todas menos aquela que realmente o justifica. essa é, geralmente, demasiado volátil para ceder ao cinzel do consciente e demasiado palpável para permanecer no inconsciente - e aloja-se então no submundo onde se processam os sonhos.

«Protagonista/Plateia»

em memória de uma Julieta morta. ou ao desagrilhoamento de Prometeu.
«Apesar das regras que seguimos, às vezes sem nos darmos conta, existe na nossa vida algum espaço de criatividade. Aliás, a vida de cada um de nós é uma verdadeira obra de arte, uma grande encenação teatral. É suposto que autor, encenador e protagonista sejam a mesma pessoa (cada um de nós), mas isso raramente acontece. Em geral, já que muitos guiões e cenários são postos à nossa disposição, temos a possibilidade de saltar de uns para outros. Ou então tentamos rescrever o texto e fazer pequenas mudanças no cenário e adereços. Mas a margem de manobra não é tão grande como supomos, e será tanto menor quanto menos consciência tivermos disso. Mesmo quando estamos a viver um grande momento, deveríamos perguntar se não estamos reproduzindo algum romance escondido sob o entulho da nossa memória, romance esse transformado agora em automatismos do nosso corpo.»
(...)
«É assim que, por detrás da nossa vida, existem sempre importantes personagens ocultas. Para além das mais óbvias, é nestas personagens que podemos descortinar a racionalidade (ou aparente irracionalidade) das nossas vidas. São sempre pessoas significativas que, indirectamente, nos moldam. Nem sempre nos apercebemos delas, e chega a acontecer que ignoremos completamente a sua influência enquanto continuamos o espectáculo...para elas, Se o leitor quiser saber quem constitui essa sua plateia, talvez seja melhor consultar um psicanalista

J. L. Pio Abreu, in Como Tornar-se Doente Mental

para além de formular a carta de recomendação à leitura deste pequeno manual, recordo, a propósito do primeiro parágrafo, a Anny que transportava consigo todos esses adereços aparentemente inúteis mas necessários à idiossincrasia. e, ainda, as suas situações privilegiadas e os seus momentos perfeitos - ainda cabem nos nossos dias?