29 de dezembro de 2006

Quatro

"Fumávamos marijuana nos Andes misturada com o tabaco adocicado dos Baracoas. Ouvíamos Quilapayún e Janis Joplin, cantávamos com Víctor Jara, Inti-Illimani e The Mamas and the Papas. Dançávamos com Héctor Pavez, Margot Loyola e os quatro rapazes de Liverpool fizeram suspirar os nossos corações. Usámos calças boca de sino e as nossas raparigas mini-saias que excitaram deus e o diabo. E tivemos modos próprios, porque uma só palavra bastava para saber o que éramos e o que sonhávamos: olá, Companheira, olá, Companheiro. E com isto estava tudo dito."
Luis Sepúlveda, "Memorial dos Anos Felizes", in O Poder dos Sonhos

27 de dezembro de 2006

Ainda

"O Poder dos Sonhos", do Luis Sepúlveda, foi o livro que o meu pai me deu no natal. confesso que fiquei um bocadinho de pé atrás. não sendo ele nada voltado para as psicanálises, desconfiei que esta escolha se devesse ao restrito leque a que a falência de uma das 3 ou 4 livrarias desta terra nos rendeu, e ao facto de a edição ser recente.
é uma colectânea de crónicas, e aqui começamos e entender-nos. e, por obsceno (ou não) que isso nos pareça, tem qualquer coisa de panfleto comemorativo da morte de um tirano (neste blog, que é uma coisa introspectiva e snob, não há assunções políticas, por isso consultem a imprensa das últimas semanas).
este livro vem confirmar o nosso acordo. com uma geração de entremeio, sendo os nossos laços biológicos desafiadores da história natural das genealogias, tendo tu vivido no tempo certo e tendo eu nascido neste húmus apático, corríamos o risco de não nos entendermos ideologicamente - ou, mais provavelmente, de eu ser alheia a ideologias.
"Sonho, ainda acredito nos meus sonhos, e uma forma de acreditar neles é recordar essas anotações. Sonho que um jovem escritor se fecha numa biblioteca e encontra um livro surpreendente; por isso, há muito tempo que renunciei à vaidade da biblioteca pessoal. Acompanham-me umas quantas centenas de livros que são, na sua maior parte, de amigos, ou livros a que retorno uma e outra vez. Mas esvazio sistematicamente as minhas estantes e ofereço a várias bibliotecas públicas os livros que considero necessário partilhar. Esta é uma bela maneira de partilhar e socializar os sonhos.
"Sonho, e não me importo que uma visão de lucro como única orientação do homem estigmatize os sonhos e os sonhadores. Considero-me um sonhador, paguei um preço bastante duro pelos meus sonhos, mas são tão belos, tão plenos e tão intensos que voltaria a pagá-lo uma e outra vez.
"Creio que não há sonho mais belo do que um mundo onde o pilar fundamental da existência seja a fraternidade, onde as relações humanas sejam sustentadas pela solidariedade, um mundo onde todos compartilhemos da necessidade de justiça social e actuemos com coerência."

26 de dezembro de 2006

Châtelet

(isto não passa de um apontamento inócuo)
omitindo da minha retrospectiva o frenesim histérico que pauta as adolescências, não há muito de emoção manifesta nos meus dias. com alguma pena minha, em certas circunstâncias em que desejaria reagir no instante, o que evitaria aqueles arquejos involuntários de sobrancelhas que dominam a minha mímica facial quando me apercebo de uma realidade que me constrange.
é claro que prefiro fitar insistentemente o apelido "Châtelet" na lombada de um livro enquanto recebo a notícia de uma morte e mais tarde arquejar compulsivamente as sobrancelhas, em vez de chorar desalmadamente no funeral de alguém cuja fisionomia não recordo.
e, não obstante a mágoa que tal desperta, prefiro aparentar frigidez, desapego e apatia quando me dizes que beijaste outra mulher, mesmo que vá passar meses em prantos e com repulsa pelos sítios onde estive contigo e por qualquer tipo de comida. mesmo que a minha identidade venha a ficar tão em cacos que tenha que procurar outra.
enfim, tudo isto já se passou e, de facto, a identidade que acabou por substituir a desgraçada não pretende repetir tal acrobacia. sem qualquer fé na humanidade ou nos homens, fico triste de cada vez que algum trai a sua mulher ou de alguma forma a faz sofrer. e isto passa-se nas músicas, nos livros e nas casas.

17 de dezembro de 2006

Leonor

o que me agrada neste livro (Elegia Para Um Caixão Vazio, do Baptista-Bastos) é que, embora releia sempre as mesmas partes, por mim seleccionadas e devidamente assinalada com a (irritante para alguns) dobra no canto da página e por vezes sublinhadas por lápis de carvão, os parágrafos me fazem sempre lembrar uma ou outra coisa. como este.
«Mas amámo-nos de forma ausente, nessa noite; pressionados por miríades de pulsões externas a nós mesmos, os corpos reclamando o abandono da sua própria natureza e os pensamentos a resistir a essa obstinada entrega. Dominava-me um nublado receio, a serenidade apaziguadora não surgia, os nervos tensos, o coração aflante. Leonor fingia dormir: eu sabia-a desperta, de pálpebras cerradas, a respiração pausada. Nada nos impelia a conversar na cama. Alguma coisa nos tornava reclusos dos nossos pensamentos, e temporariamente afastados um do outro. Saí, sem rumor, e, já madrugada, entrei no Ritz Clube, sentei-me à mesa de conhecidos, bebi demasiado, fui dormir com uma prostituta, num quarto com rebaixo, mesmo junto à esquadra da Praça da Alegria. Acordaram-me com socos na porta, muito depois do meio-dia; estava só. (...)»

11 de dezembro de 2006

Dejá Vu

era em janeiro, horas avançadas. uma insistência minha em ficar. à espera de alguma coisa que viesse - e que veio. como é habitual nas minhas reconstruções mentais, recordo-me de que havia um cheiro distinto e peculiar, que agora não consigo identificar, entranhado no meu corpo, que assinala a impressão dos dias na memória. já então não me conformava com o acto passivo da observação, adicionava-lhe a tentativa de conservar a cada objecto a alma que se lhe atribui.
uns meses antes, repararas no autor sul-americano que me acompanhava, e do qual tenho dois livros abertos no raciocínio. corrompia-me um formigueiro no dejá vu da tua atenção. corrompia-me a consciência da corrupção. mas ouvia repetidamente a música antes de me deitar.
sucederam-se os meses seguintes, inúmeras vezes te escrevi, nunca me denunciei. há que tempos que não ouvia aquela música. hoje lembrei-me.