12 de outubro de 2004

Necrologia

Um cadáver descomposto, com o nó da gravata descuidado e um olhar desiludido, cheira a terra molhada. Se eles exumam as almas ao cobrirem os corpos com flores, eu ignoro a putrefacção com o cheiro da terra molhada. Levantei-me e afinal era eu o cadáver, e mais o início de uma história pouco promissora.
Fantasiar sobre cadáveres descompostos é talvez um hábito inesperado para um indivíduo como eu. Ninguém diria – ou, pelo contrário, devem ser registados alguns eventuais indícios ou, simplesmente, acontecimentos intrigantes. Quando aprendi a ler, como todos os miúdos, cansado de frases elementares e pouco prováveis como “o pato papa o pópó”, tentei a folha do jornal.
Transição mal sucedida. De início, percorri em vão as páginas, até encontrar um grafismo familiar. Pedro, que é o meu nome, num rectângulo com uma cruz, uns números e umas poucas palavras, entre as quais “Pedro”, que é o meu nome. Terá surgido assim a fascinação pela necrologia. E daí passei à necrofilia.
Ela acordou e eu
fingi que dormia, não gosto que ela saiba que estou acordado quando ela acorda, é uma sensação embaraçosa de tão reconfortante. À tarde mandei-lhe flores, um bilhete (“Nem dei por saíres hoje de manhã.”, em vez de “Tenho saudades tuas.”).

1 Comments:

Blogger Tivie said...

Cadáveres em decomposição... não é uma maneira muito bonita para se começar qualquer coisa. Sobretudo porque me vem a memória (ou ao nariz, se preferirem) o cheiro a queijo camembert deixado fora do frigorifico durante demasiado tempo. O mais estranho é que eu gosto de queijo camembert. Desde que não seja abandonado fora do figrorifico claro.

Quando editamos o nosso livro? Espero ter mais oportunidades para estar contigo este ano!

8:03 da tarde  

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