Dona Filomena
estou a aburguesar-me. não sem auto-crítica, não sem algum remorso. a culpada é uma senhora que usa camisolas com padrões de leopardo, calças de ganga colorida justas e cabelo cobreado. seu nome é dona filomena. morava na nossa rua, umas portas mais acima. certa manhã, estando nós em estado de necessidade, tendo apelado aos conhecimentos da prima do terceiro andar, dona filomena entrou-nos pela casa, abriu a janela, acendeu um cigarro e disse dramaticamente: "isto está um horror, menina". na semana seguinte, trouxe um escadote e reclamou por sonasol. seguiu-se um doce matrimónio empresarial. por uma ninharia à hora, limpou as tabuinhas da janela da sala, manteve os azulejos da cozinha brancos semana após semana, e começara já a fazer uma coisa que não julgáramos ser possível na nossa casa partilhada de jovens adultas solteiras: as limpezas de verão. vinha às sextas-feiras logo depois de almoço. éramos felizes. até que quis o destino que um qualquer quarentão divorciado lhe aquecesse os pés e a levasse para os lados de queluz. primeiro, pensámos que deixava de aparecer. para sempre. passadas umas semanas ligámos, disse que vinha, só que à sexta-feira não calhava bem. dona filomena voltou, e de novo a sensação de que devíamos envelhecer juntas. foi por pouco tempo. agora, está a substituir alguém durante as férias, lá em queluz. só podia vir ao sábado, e a nós não nos dava jeito. diz que talvez volte em setembro. pode bem imaginar as saudades que temos suas, dona filomena.
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