24 de março de 2006

Cemitério (cont.)

«Desta vez despistar-te-ei - jurei a mim mesma. - Estou resolvida a pertencer-me. Para tanto, cultivarei a sabedoria da traição. Tornar-me-ei nesse ser inviólável em que a mulher se converte, usando o velho talismã das mentiras. Estou farta da moralidade das nossas verdades. Foi ela que nos perdeu. Matou o nosso amor com o veneno do desencanto. A provecta imoralidade do adultério! Eis no que talvez consista a chave das aprazíveis relações amorosas.»
Natália Correia, in A Madona
Cemitério (continuação)
Encruzilhadas
o mesmo gesto que outrora os noivos repetiam - o pas de deux do solícito antebraço que auxilia a manga do casaco a ajustar-se ao seu ombro, menina - a estação repousa agora um imperceptível sinal no ângulo em que o ramo se une ao tronco. «- uma flor branca muito pequenina» - disseste, numa manhã de janeiro. a flor branca emerge geralmente do ramo mais frágil, mas não do troço que suporta as divergências. (és talvez representação e síntese e talvez irrealizável enquanto entidade abstracta. sabes como me aprazem os preâmbulos - até à possibilidade cronologicamente improvável de os perpetuar antes do âmbulo.) a primeira vez que se acendeu em mim uma candeia de curiosidade pelo teu corpo, levavas a cabeça tapada com um chapéu de chuva e - o que me permitiu identificar o objecto da minha curiosidade, aquela saia das riscas diagonais. descias. do outro lado da estrada, eu subia apressadamente e sem chapéu. soube mais tarde que nesse dia me viste e me perdeste para os quartos inabitados ao fundo do corredor das minhas comoções - essas divisões soturnas que ocupas agora, onde barba azul escondia também as suas vivas aprisionadas. esta outra rapariga estava também condenada a uma morte melancólica.