A Morte Pobre
«Entrou de noite. Quase sem memória. Uma floresta em chamas dentro dos olhos fechados: o clarão vermelho de muitos sobreiros, atrás a mancha suja e pobre dos dias velhos...
«Arquejava, sentia os pés frios. Era um tão longo corredor, com cheiro a remédios! Só - estivera ele desde sempre. Nunca aprendera a rezar, não rezou. Por fim, já nem arquejava. Exausto, encontrava a serenidade. Dentro das pálpebras, boiando, a sua vida rota, às tiras. Tanto pontapé no rabo, tanta malagueta na língua. Depois as grandes fomes dos anos cinquenta. Depois a doença. Que doença? Nem pudera emigrar. E isso era o pior de tudo: ver os outros ir e ter de ficar. Roído de raiva morna, descendo o fosso da velhice, ali, na terra às moscas, a ver surgir os tractores e ele sem letras gordas sequer. Qual carta de condução!, qual arado, qual sachola sequer que nem as mãos já lhe seguravam!
«O tempo dos missais do espaço, a morte dos segundos já mortos. Foi enfim observado, em Lisboa. E, como tinha protectores que por ele se interessavam, o médico apressado, mas gentil, e até provavelmente consciencioso, diagnosticou: «Leucemia. Mas para durar. Bem tratado, pode aguentar ainda uns anos. Daqui a um, dois, três dias, dou-lhe alta. É ainda o melhor que lhe pode acontecer.»
«Mas não foi assim. A sorte - se sorte havia para ele - parou nos ponteiros do hospital. O alentejano (cinquenta invernos, assim se diz, que pareciam setenta restos de tormenta) não se dava com a comida.
«Ainda houve quem avisasse:
« - Tirem-no depressa daqui, o homem é esquisito de boca, por este caminho não morre de leucemia, morre de fome.
«E o protector curou das formalidades, buscou entrar em contacto, de novo, com o médico, que andava à beira de um esgotamento nervoso (fruto de impotência, desconsolo, trabalho frenético, desgaste constante: ria e era como se estivesse prestes a chorar).
«O alentejano não chegou a ter alta, encontrou antes disso a quieta felicidade da morte pobre.»
Urbano Tavares Rodrigues, in Viagem à União Soviética e Outras Páginas
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