2 de agosto de 2004

Farsa (de Julieta morta)

tu dizias que nunca ias cansar-te da minha farsa. então eu fitava-te fixamente, através da cortina translúcida que separa o palco das cadeiras de veludo vermelho, a cortina translúcida que sempre me separou de ti. prendia o cigarro entre os lábios – slow motion – até o fumo se tornar símbolo.
dizias que nunca ias cansar-te da minha farsa. que estarias sempre na primeira fila da plateia, noite após noite. que nunca ias cansar-te da minha farsa. que em cada noite desvendarias um novo enredo no meu sorrir. (sim, então eu sorria.) desvelava palavra a palavra som a som o monólogo, até me esquecer de tudo era uma farsa, até me esquecer de que a noite era um pano preto.
(tantas vezes te esqueceste de aplaudir. sabes que Julieta morre quando não ouve os aplausos no fim do veneno?)

dizias que nunca ias cansar-te da minha farsa.
de novo o cigarro entre os lábios – desta vez tão lento que...

depois o improviso. tu continuas a não aplaudir e o quinto acto terminou há muito é quase manhã o pano preto vai romper não posso improvisar mais...já não há cigarros o maço está vazio. o silêncio também é uma palavra... de novo, improviso. a cadeira (nos monólogos há sempre uma cadeira, no centro do palco) através da cortina de vazio que me separa de ti, a cadeira em pó aos teus pés e tu sem aplaudir. dizias que nunca ias cansar-te da minha farsa.
(eu, agora, Julieta morta no centro do palco. o pano preto caiu. cansaste-te da minha farsa.)