Outra(s) Ítaca(s)
Mas hoje é a Praga que regresso. Entretanto, passei duas vezes, com algum tempo, pelos lugares de Kafka (e de outros, no território da antiga Boémia). Voltar à travessa dos Alquimistas, e à casinha onde Kafka escreveu algumas das histórias de uma obra que é toda ela uma parábola que fala constantemente da impossibilidade de acesso à verdade num mundo de pura contingência, é constatar ao vivo o sentido dessa contingência e da acção do tempo nela. A ruela, que imagino sombria e fantasmática quando Kafka a atravessava para regressar à casa paterna depois da escrita nocturna, é hoje uma paleta de cores fortes, e bem podia chamar-se a travessa dos Turistas.
Kafka foi, como vários outros membros do chamado «Círculo de Praga», figura de cafés. Lia os seus textos (mas hesitava muito em publicá-los) aos amigos como se fossem histórias cómicas, no menos absurdas, no Café Arco e no Salão Fantas, ao lado daquele que hoje se chama Café Milena. O Arco já não existe, ao Milena fui algumas vezes. Kafka era guloso, apesar daquele ar doente e ascético.
Uma questão de mundos (antagónicos), o da escrita e o do comércio. Quem vive para comprar e vender não pode compreender o impulso de liberdade contido no acto inútil da escrita. Quem compra e vende está todo no dinheiro que faz, quem não compra nem vende está disponível para ser o que escreve. E Kafka, apesar de também ser funcionário cumpridor de uma companhia de seguros, “é o corpo da sua escrita, e esta é a escrita de um tempo e de uma condição”.
Faz certamente sentido dizer que os escritos de Kafka, que vivem de pôr em linguagem o olhar que descobre gestos e sinais num lugar limitado, Praga e o seu pequeno mundo, são inesgotáveis para a leitura. E são inesgotáveis porque, indo ao fundo do que há de mais incomodamente humano, nos colocam diante dos olhos sucessivos espelhos que nos assustam, pela identificação que sobressalta e pelo mistério que inquieta.
Kafka foi, como vários outros membros do chamado «Círculo de Praga», figura de cafés. Lia os seus textos (mas hesitava muito em publicá-los) aos amigos como se fossem histórias cómicas, no menos absurdas, no Café Arco e no Salão Fantas, ao lado daquele que hoje se chama Café Milena. O Arco já não existe, ao Milena fui algumas vezes. Kafka era guloso, apesar daquele ar doente e ascético.
Uma questão de mundos (antagónicos), o da escrita e o do comércio. Quem vive para comprar e vender não pode compreender o impulso de liberdade contido no acto inútil da escrita. Quem compra e vende está todo no dinheiro que faz, quem não compra nem vende está disponível para ser o que escreve. E Kafka, apesar de também ser funcionário cumpridor de uma companhia de seguros, “é o corpo da sua escrita, e esta é a escrita de um tempo e de uma condição”.
Faz certamente sentido dizer que os escritos de Kafka, que vivem de pôr em linguagem o olhar que descobre gestos e sinais num lugar limitado, Praga e o seu pequeno mundo, são inesgotáveis para a leitura. E são inesgotáveis porque, indo ao fundo do que há de mais incomodamente humano, nos colocam diante dos olhos sucessivos espelhos que nos assustam, pela identificação que sobressalta e pelo mistério que inquieta.
(João Barrento)
para quem acha a crença no fenómeno coincidência um tanto ou quanto obsoleta, a ironia é uma boa alternativa. curioso é o facto de estar a pensar em crónicas e, constantemente, em Praga, quando alguém entrou no meu quarto com esta revista. o excerto é de uma crónica chamada «Uma espécie de cegueira», incluída na secção Outras Ítacas, no número 63 da Ler – Livros & Leitores. e aqui transcrevo algumas frases aparentemente sem destinatário. mas considero a aparência tão obsoleta quanto a coincidência. são para ti.
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