5 de maio de 2005

Fios de Larvas

Já sabes como é que começa. Primeiro é só uma frase bonita, ainda nem sabes o que quer dizer. Um som de cortina numa manhã à tua espera, aquele cinzento azulado dos pequenos almoços. No torpor o som escorrega como um miado, pelos ombros e depois pela palma da mão. Não sei se quero voltar a ver a fotografia. É triste pensar em pessoas que já morreram. Os cabelos escorriam pelo ombro e agora são fios de larvas. Gostava que guardasses os meus cabelos. Se juntar as ideias deixam de ser ideias soltas, e assim são mais livres. Mas os cabelos são coisas que se guardam. Que mal tem conseguir cheirar a tua voz? É um poema lento, daqueles em que a poesia não está no tamanho das linhas. Pendurei um relógio na parede da chaminé e pedi-lhe para me contar o tempo. Então ele disse: «Esta estória chama-se elipse e escrevia-a para ti.» É assim que começa. É uma frase bonita. Ainda não sei o que quer dizer.
(Carta com destinatário, sobre uma fotografia de Sophia de Mello Breyner e sobre a incapacidade de escrever um conto. Aproveito para relembrar o Abutre.)