31 de agosto de 2006

Pensamento Mágico

fiquei hoje a saber que a eficácia do responso a santo antónio depende de duas condições: deve ser rezado, sem enganos, por uma mulher de nome Maria - por muito beata que seja uma Joana ou uma Rita, o santo não a poderá atender. ora isto explica porque é que nunca funcionou comigo. com a minha avozinha - que para a Alice nunca deixou de ser a menina Maria do Rosário - dava sempre resultado. para quem não sabe - ateus, livres-pensadores e essa escumalha - o santo antónio é o tipo que nos ajuda a encontrar as coisas quando elas desaparecem. a minha tia, que perdeu o noivo um mês antes de casar, tem a casa cheia de santinhos de todos os tamanhos, materiais e feitios. e até se chama Maria. mas o noivo, até hoje, não deu sinais da sua graça - com certeza que ela se está sempre a enganar na reza, afinal ela tem que espalhar post-its por toda a cozinha para não se esquecer dos medicamentos que tem que tomar. fazer cruzes no pão para ele crescer mais depressa ainda é como o outro, uma pessoa desconfia mas deve haver uma explicação física para tal. agora que a dona Ângela - de cognome 'a colonialista' - me entre desaustinada pela loja adentro porque a mulher-a-dias tinha dado sumiço às chaves da Martinha e não havia nenhuma Maria mais perto, é um ultraje ao cepticismo. pois fiquem também sabendo que, se cortarem as unhas à terça ou à sexta-feira, elas crescem mais depressa, porque esses são os dias que o diabo escolheu para cortar as dele. isto é conhecimento útil. estarão certamente informados de que não é recomendável um trabalho ser feito simultaneamente por três pessoas. há quem diga que a mais nova morrerá em breve.

27 de agosto de 2006

Ciúme

na sua opinião, os homens que manifestam sentido de posse são perigosos porque um pequeno transtorno os pode transformar em românticos oportunistas, desses que conseguem conferir um significado à expressão "prova-de-amor" e mesmo formalizar-lhe um protocolo. nem sempre estes pressupostos implicam uma lógica límpida, como a linguagem utilizada pelo actor com quem contracenou numa peça cujo guião, por motivos mais ou menos esclarecidos, está escrito em código e nunca pode emergir acima do subconsciente.

24 de agosto de 2006

Sussu

não reconheci logo a professora amália. depois lembrei-me daquela tarde em que a nossa professora helena havia ficado doente e nos levaram para a sala da segunda classe. a dona amália estava a dar uma aula de desenho, o que me leva hoje a crer que se localizaria aproximadamente no extremo da vanguarda, numa escola primária que ainda tinha crucifixos nas paredes. ela explicava que, quando desenhamos, devemos transportar para o papel aquilo que vemos - e não inventar traços que não estão lá. lembro-me de me esforçar por, segundo estas indicações, aperfeiçoar a folha da espiga de milho, arredondando a sua origem. mais tarde, quando estudei estas coisas (as especializações funcionais do córtex cerebral e não as espigas de milho), deduzi que quando se desenha se utiliza mais a cabeça e os olhos do que o polegar e o indicador. ela tinha razão. ainda assim, nunca consegui desenhar um retrato fiel ao seu modelo. embora tenha nutrido durante algum tempo a esperança de um parentesco de sangue com a tia sussu, que estava no brasil e mandava para cá uns quadros em tons de cinzento esverdeado e verde acinzentado, daqueles que, por mais pequenos que sejam, enchem a sala com a austeridade de uma casa que tem um moribundo no quarto dos fundos. mas ela estava era casada com o meu tio fernando, irmão da minha avozinha. nada feito.

23 de agosto de 2006

Três Nós

o pior eram as tardes em que o sol não se descobria nem se adivinhava por detrás do nevoeiro. às vezes, até um breve aguaceiro tépido se nos colava nos membros e fazia cócegas como uma penugem. nessas ocasiões, aprendíamos a bordar ponto-grilhão, porque nada torturava mais a consciência do que o marasmo de uma terra semi-despovoada e apenas visitada no verão pelos afortunados descendentes dos colonos que ali haviam visto passar a vida como um comboio de mercadorias, que apenas se vislumbra na linha a horas certas com prolongados intervalos entre si. assim, preferíamos prender a agulha entre os dedos e dar os três nós que competem a essa arte contemplada nos romances de júlio dinis e que dantes se servia para as raparigas não se aperceberem da sua inutilidade intelectual. e, no decorrer dessas actividades, era prudente trocar confidências.

22 de agosto de 2006

Água e Feijão

"A liberdade era Dora também. Não era só o sol, andar livre nas ruas, rir no cais a grande gargalhada dos Capitães da Areia. Era também sentir junto a si o cabelo loiro de Dora, ouvir ela contar coisas do morro, sentir os lábios dela sobre os seus lábios feridos. Noiva. Também ela estava sem liberdade. Os membros de Pedro Bala doem e agora dói sua cabeça também. Dora está com ele, sem sol, sem liberdade. Foi levada para um orfanato. Noiva. Antes que ela aparecesse, ele nunca pensara nesta palavra: noiva. Gostava de derrubar negrinhas no areal. De encostar peito com peito, cabeça com cabeça, pernas com pernas, sexo com sexo. Mas nunca pensara em deitar na areia ao lado de uma menina, menina como ele, e conversar de coisas tôlas e correr picula como os outros meninos, sem a derrubar para fazer o amor. Era outra maneira do amor, pensava numa confusão. Êle nunca tivera uma idéia perfeira do amor."
Jorge Amado, in «Capitães da Areia»

16 de agosto de 2006

Eco-de-Risos

a casa de férias que não tive emerge na memória como um eco-de-risos semelhante a um chilreio matutino. intromete-se no registo de acontecimentos marcantes maioritariamente vinculados a ritos de separação. as chegadas cambaleantes desde cedo me fizeram aguardar a família como a um passeio enfadonho - sem entusiasmo, com algum temor. conto os dias que faltam para viajar. porque tenho saudades da casa de férias.

15 de agosto de 2006

Art Noveau

The Peacock Skirt (1892)
Aubrey Beardsley

8 de agosto de 2006

Travessa dos Amores

«Numa aldeia de pescadores, chamada Burgau, virada a Sul no Barlavento Algarvio, existe uma Travessa, mas não é uma Travessa qualquer, é uma travessa onde apenas passa uma pessoa de cada vez. É de tal maneira estreita que se a pessoa for muito forte fisicamente terá dificuldade em passar. A história conta que nesta aldeia os namorados passavam a travessa da única forma possível, ao mesmo tempo mas de lado e frente a frente até se tocarem com os narizes, até se tocaram com os lábios. Esta travessa existe de facto e a tradição continua viva, viva como um amor frágil, forte como o tempo a passar. A Travessa dos Amores é única de tão estreita que é. As pessoas continuam a passar naquela rua estreita e curta, às vezes dois a dois, com o amor e um beijo pelo meio, e o tempo necessário para amar.»
Nuno Leal Ângelo, in CAIS #111

5 de agosto de 2006

Cacimba

«Cheira a chuva de novo.» - escreves. e eu tenho os pés molhados de andar descalça no chão de outra ausência. e, no entanto, só caiu uma cacimba, daquela que levanta o pó. (paro para encontrar o lugar certo das vírgulas, não te ocorre nada?) chove mais. e, numa confissão, o reconforto de um casaco emprestado quando se está longe de casa. e saudades de ir a correr para o meio da chuva, levantar a cabeça, (sem verbo) os pingos a escorrer pela cara, discutir imperfeições linguísticas durante o café da manhã. (o frio pode ser uma textura?)
«E, no fim deste vendaval, um firmamento.» - escrevo-te.

2 de agosto de 2006

Havana

« fidel castro encontra-se, de momento, nos cuidados intensivos. »
nesse instante, percebeu que a miúda se tinha feito mulher. sentada no chão da sala, folheia revistas de moldes de vestidos. baixou os olhos e reparou que os modelos são diferentes dos que se usavam no seu tempo. lembrou-se dos bailes. dos rapazes que lhe pediam a mão para dançar. daquele cujos olhos nunca mais esqueceu - apesar de ser desajeitado com os pés. quis falar-lhe de como tinha amado aquele que depois do ultramar casou com outra, mas não foi capaz. afinal, também ela casou com outro e a miúda até já se fez mulher.
« fidel castro encontra-se, de momento, nos cuidados intensivos. »