26 de fevereiro de 2006

Outro Episódio

talvez não se trate de um episódio digno de registo. ainda assim, achei por bem registá-lo. porque me aconteceu já, em várias ocasiões, ter assistido a um curioso fenómeno: quando acidentalmente se soma um facto aparentemente insignificante a outro facto aparentemente ainda mais insignificante, alguma coisa passa a fazer mais sentido. mas também me parece que não se trata de um episódio digno de divagação introdutória, mas desde que li a elegia para um caixão vazio (do baptista-bastos, esse cão velho entre flores), percebi que se pode começar de sucessivas e múltiplas maneiras a mesma estória sem que a linha de acção seja redundante nessas diferentes línguas em que se escreve a mesma frase.
é que isto acontece-me desde menina. ainda não sou propriamente uma pessoa crescida, mas com a referência cronológica anterior quero dizer que isto me acontece desde menina-menina - mais fácil assim: desde o tempo em que ainda conseguia morder o dedo grande do pé (lembro-me de fazer isso). o quê? acontece-me ficar triste por não conseguir acompanhar as manifestações colectivas de euforia-sem-acontecimento-desencadeante. por sinal até tenho tendência para as oscilações, essa permanente contradança euforia-disforia, mas há qualquer coisa que me impede de assumir o primeiro extremo quando a população circundante o faz despreocupadamente. entretanto descobri que há frases que me fazem tirar o pé do chão (o que, mesmo que não me torne outra vez capaz de morder o dedo grande, é um bom começo) mesmo que o estado geral seja a euforia - frases que consequentemente me projectam para dentro da tigela do estado de espírito colectivo. o meu cartão de crédito é uma navalha.
ah, o episódio. é só a lembrança de uma tarde remota, terça-feira de carnaval. esperei ansiosamente na sala que a minha mãe acabasse de coser as orelhas ao fato de coelho. depois havia serpentinas cor-de-rosa, verdes e amarelas. e, ao nível do meu ombro, do lado esquerdo da fotografia, o antebraço-mão do meu pai, o limite bem definido pelo relógio que desde sempre me lembro de lhe ver, que tem uma história qualquer que nunca apanhei desde o início. acima disso, a manga da camisola cinzento-verde, arregaçada. há menos anos, era costume ir passear com ele até à praia nas manhãs de terça-feira de carnaval.

22 de fevereiro de 2006

Mimetismo

os repórteres são sanguessugas com tenazes aguçadas - que extraem o sangue - e dedos ágeis - que relatam o sucedido. foi assim que as gotas das nossas conversas começaram a manchar este sítio. ela diz "metamorfose" - eu penso "mimetismo". sem discórdia: mais um insecto. outro espaço: esquisso um mundo em quadradinhos para evitar os trajectos circulares. submergi.

20 de fevereiro de 2006

Ou Consequência

questionei a pertinência do objecto. a luz escorria no soalho - que se deixava molhar, quase encharcar por ela. avaliei então o risco. não usar pronomes pessoais. (ou seriam advérbios? - eram, certamente, partículas vocabulares - que é a categoria que se usa quando não se conseguem classificar os insectos) avaliei novamente o risco. como se esse gesto encerrasse em si uma consequência tão grave como a inversão de uma hierarquia, o homicídio de uma criança de tranças ou a execução de um inocente acusado desse mesmo crime.

14 de fevereiro de 2006

Sistema Nervoso Simpático

ainda acredito que o mundo não está irreversivelmente perdido. alguém no outro dia dizia qualquer coisa acerca de crescermos a ouvir histórias que acabam com «e viveram felizes para sempre» e em que os personagens são, invariavelmente, criaturas prototípicas da beleza neoclássica, regra geral morgados de boas famílias. dizia ela que (ou fui eu que pensei que?), obviamente, tais representações icónicas não vão tomar café aos mesmos sítios que as pessoas de carne e osso e (isto fui eu que pensei) tais arquetipificações dificultam os relacionamentos interpessoais na medida em que corrompem a objectividade, o bom senso e a especificidade dos afectos. isto porque entre os órgãos periféricos e o córtex sensorial vai um sinuoso trajecto polissináptico - mas, se fosse só isso, seria bastante simples. o complicado é que os contos de fadas activam as áreas de associação por comparação com experiências passadas. e depois o sistema límbico que ninguém percebe muito bem. (pensar na tricotomia empirismo vs racionalismo vs apriorismo)
ainda assim, acredito que o mundo não está irreversivelmente perdido.

13 de fevereiro de 2006

O Prólogo de Julieta

NOTA: foi com alguma surpresa que, a dedilhar páginas que já foram brancas, descobri o episódio que tinha desencadeado a farsa de Julieta morta. 8 de março de 2003 foi, se não estou em erro, um domingo. e, nesse caso, a farsa terá vindo ao mundo numa segunda-feira.

8 de março de 2003 - no meu sonho havia uma boneca de trapos no cimo de uma parede. enrolada na penumbra decadente dos crepúsculos de cortinas fechadas. a janela o homem a cabeça calva o gorro preto a senhora de robe «quero ir embora» «mas para onde queres ir, amor?» «quero ir embora quero ir embora» [NOTA: espaço físico: Rua do Castelo.]

9 de março de 2003 - [qualquer coisa simples e perigosamente bonita, ainda acerca do fantasma do gorro preto, que não vou transcrever - por não ser ele mas a loucura em vez dele - e segue-se a primeira versão da farsa]

4 de fevereiro de 2006

Gaiola

ousavam ensaiar um grito de revolta. um grito de revolta não tem que enclausurar uma ideia - abre a gaiola da contra-ideia. ela é um pássaro verde, de bico aguçado e olhos líquidos. eu também podia ser um pássaro verde assim. perscruto os trajectos que me (nos) levam ao absurdo, e interpelo-os: «por que razão nos trazem de volta?» - e nunca serei capaz de fazer entender o que vejo pelas janelas, porque as linhas da minha mão são demasiado turbulentas (e uma linha em lugar algum da literatura foi turbulenta. só na minha mão.)

em menos de uma linha rasga-se um épico.

é sempre assim. um homem ama uma mulher durante algum tempo e depois solta-o como a um pássaro verde (ou trapo sujo). amar é um acto que se diz com a língua e se escreve com os dedos. desdiz-se no silêncio que depois se instala quando pergunto «ainda gostas de mim
(25 de Janeiro de 2006)