12 de dezembro de 2004

Le Petit Prince

Reler O Principezinho - ou a História Universal, edição permanentemente actualizada.
«- Eu, cá por mim, tenho uma flor. Rego-a todos os dias. Tenho três vulcões. Limpo-os todas as semanas. Porque também limpo o que está extinto. Nunca se sabe...É útil para os meus vulcões é útil para a minha flor que eu os tenha. Mas tu não és útil para as estrelas.»

Antoine de Saint-Exupéry

O que há de tão extraordinário em Saint-Exupéry é não ter deixado de acreditar em elefantes dentro de jibóias onde os todos viam chapéus. Eu, cá por mim, não entendo se se tratava de dogmatismo ou cepticismo. E vocês?

7 de dezembro de 2004

Cinema Tour

Rodrigo Leão no Cine-Teatro de Alcobaça
Cinema Tour ou a
cinematografia dos sons representados

Rewind para uma breve sinopse
Em pleno período de revolução cultural e musical, a electrónica década de 80, ouvem-se os ecos (telepáticos ou radiofónicos?) do urbanismo depressivo e errante que deambula na cinzenta Manchester, personificada pelos míticos Joy Division/New Order. Neste contexto, Rodrigo Leão é um dos membros fundadores de uma das bandas icónicas da música moderna portuguesa, Sétima Legião. Numa demonstração do pensamento divergente típico dos génios criativos o músico iniciará um projecto paralelo que cedo se salientará no panorama musical português, os Madredeus. Em 1989, ensaia a sua primeira experiência de composição a solo na banda sonora do filme Um passo, outro passo e depois... de Manuel Mozos. Quatro anos depois, é lançado Ave Mundi Luminar, com os Vox Ensemble. A ruptura com os Madredeus dá-se em 1994. Em nítido crescendo evolutivo, são editados Mysterium (1995), Theatrum, Alma Mater (2000) e Pasión (2001, primeiro registo ao vivo).
Cinema é a mais recente realização de Rodrigo. O álbum editado no passado mês de Junho conta com as notáveis colaborações de Ruichy Sakamoto, Beth Gibbons, Helena Noguerra, Rosa Passos e Sónia Tavares.

Play
No auditório do recentemente remodelado Cine-Teatro de Alcobaça, decorreu no passado dia 19 um dos episódios do Cinema Tour, digressão mundial de apresentação deste trabalho. Num rendez-vous de sonoridades que oscilou entre a nostalgia latente em temas como “Cinema” ou “A Casa”, as ambiências reminiscentes da chanson francesa – “Jeux d’Amour” e “La Fête” – ou a boémia libertina da (já quase legendária) “Pasión”.
O elenco liderado por Rodrigo Leão contou com o glamour de Ana Vieira (voz), o magnetismo pitoresco de Celina da Piedade (acordeon/voz), a expressividade magnetizante de Sónia Tavares (voz), as cordas de Viviena Toupikova (violino), João Portela (guitarra), Luís Aires (baixo) e Samuel Santos (violoncelo), e ainda com as baquetas de Luis San Payo (bateria). Ao espectador atento não terá escapado o jeux d’amour entre os personagens desta sequência. Beth Gibbons faltou a esta exibição, tendo estado presente apenas nas telas de Lisboa e Porto.


in A Voz de Alcobaça, 30.Novembro.2004

4 de dezembro de 2004

Homem-Síntese da Humanidade

1. Abolição do dogma da personalidade - isto é, de que temos uma Personalidade «separada» das dos outros. É uma ficção teológica. A personalidade de cada um de nós é composta (como o sabe a psicologia moderna, sobretudo desde a maior atenção dada à sociologia) do cruzamento social com as «personalidades» dos outros, da imersão em correntes e direcções sociais, e da fixação de vincos hereditários, oriundos, em grande parte, de fenómenos de ordem colectiva. Isto é, no presente, no futuro e no passado somos parte dos outros, e eles parte de nós. Para o auto-sentimento cristão, o homem mais perfeito é o que com mais verdade possa dizer «eu sou eu»; para a ciência, o homem mais perfeito é o que com mais justiça possa dizer «eu sou todos os outros».
Devemos, pois, operar a alma, de modo a abri-la à consciência da sua interpenetração com as almas alheias, obtendo assim uma aproximação concretizada do Homem-Completo, do Homem-Síntese da Humanidade.
Álvaro de Campos, in «Ultimatum»

3 de dezembro de 2004

Ser personagem

Eis alguma coisa que alguém escreveu a pensar em alguém. Dois beijinhos, incolores, para alguém e para mais alguém. E até já.
***
O fumo teimava em sair da ponta acesa do seu cigarro.

Sempre tinha sido assim e sempre iria ser assim. Sabia-o bem.
E hoje, ainda por cima, ela tinha acordado a preto e branco.

O caminho de sua casa até ao café não tinha passado de um filme silencioso, onde as legendas surgiam na sua mente e o desenrolar da história era ditado pelo seu olhar, mais ou menos aleatório.
O café em si não era mais do que uma mera gravura em tons de cinzento, já gasta e gretada nos cantos, mais ou menos no mesmo sítio do balcão onde ficava o boião dos rebuçados – agora velhos e pastosos, sem o sabor que adoça a boca das crianças
Até os papéis, aqueles presos com fita-cola, no vidro da porta da entrada do café, eram somente miseráveis recortes de jornal. Velhas notícias cortadas irregularmente, nitidamente sem sequer a ajuda de uma tesoura de corte irreversível, mas exacto.

Ela própria sabia que, pelo menos hoje (porque o futuro ainda não existia naquele preciso momento – nem sequer ainda a preto e branco), era a imagem bidimensional de uma qualquer foto monocromática de uma rapariga a fumar.

E o fumo teimava em sair da ponta acesa do seu cigarro.

Era sempre assim.
Até o cigarro inevitavelmente se apagar, esmagado no cinzeiro.

Era sempre aquele recordação gasta e gretada, de textura pastosa e sem qualquer sabor, cujos bordos tinham sido recortados, à mão e por ela mesma, entre um cigarro e um copo de uma qualquer bebida incolor.

Coimbra, 22:40, 16-8-2004
“Filme Mudo”