28 de maio de 2006

Qui sais?

será euforia, uma reviravolta suja ou um lance de hotéis?

e se for plenitude, transgrido a minha parede branca em cada manhã.

quiçá.
e tu, que sabes tu disso?

22 de maio de 2006

Embrasse-moi, idiot

[fotografia]

mulher de ventre protuso sentada, de joelhos afastados, num bando de jardim verde-vidro-de-garrafa, no jardim do Cais do Sodré.


[situação psicológica]
mulher de pé, de joelhos unidos, num corredor longo estreito escuro, ladeado por paredes verde-água adornadas por quadros (retratos pintados de mulheres-de-gelo, de se7e gerações sucessivas).
ao fundo, uma porta encostada que dá para a pequena morte. evita-a. fecha-a. tranca-a. guarda a chave no coração.

ai meu coração, morreste de uma morte horrenda.
esborrachado contra o cimento de uma esquina de engate.

14 de maio de 2006

Metereológica

« Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios e pérolas »

« Choro
chove
mas isto é
Verlaine »
Adília Lopes
musicado pel'A Naifa, in Canções Subterrâneas

8 de maio de 2006

A Morte Pobre

«Entrou de noite. Quase sem memória. Uma floresta em chamas dentro dos olhos fechados: o clarão vermelho de muitos sobreiros, atrás a mancha suja e pobre dos dias velhos...
«Arquejava, sentia os pés frios. Era um tão longo corredor, com cheiro a remédios! Só - estivera ele desde sempre. Nunca aprendera a rezar, não rezou. Por fim, já nem arquejava. Exausto, encontrava a serenidade. Dentro das pálpebras, boiando, a sua vida rota, às tiras. Tanto pontapé no rabo, tanta malagueta na língua. Depois as grandes fomes dos anos cinquenta. Depois a doença. Que doença? Nem pudera emigrar. E isso era o pior de tudo: ver os outros ir e ter de ficar. Roído de raiva morna, descendo o fosso da velhice, ali, na terra às moscas, a ver surgir os tractores e ele sem letras gordas sequer. Qual carta de condução!, qual arado, qual sachola sequer que nem as mãos já lhe seguravam!
«O tempo dos missais do espaço, a morte dos segundos já mortos. Foi enfim observado, em Lisboa. E, como tinha protectores que por ele se interessavam, o médico apressado, mas gentil, e até provavelmente consciencioso, diagnosticou: «Leucemia. Mas para durar. Bem tratado, pode aguentar ainda uns anos. Daqui a um, dois, três dias, dou-lhe alta. É ainda o melhor que lhe pode acontecer.»
«Mas não foi assim. A sorte - se sorte havia para ele - parou nos ponteiros do hospital. O alentejano (cinquenta invernos, assim se diz, que pareciam setenta restos de tormenta) não se dava com a comida.
«Ainda houve quem avisasse:
« - Tirem-no depressa daqui, o homem é esquisito de boca, por este caminho não morre de leucemia, morre de fome.
«E o protector curou das formalidades, buscou entrar em contacto, de novo, com o médico, que andava à beira de um esgotamento nervoso (fruto de impotência, desconsolo, trabalho frenético, desgaste constante: ria e era como se estivesse prestes a chorar).
«O alentejano não chegou a ter alta, encontrou antes disso a quieta felicidade da morte pobre.»
Urbano Tavares Rodrigues, in Viagem à União Soviética e Outras Páginas

4 de maio de 2006

Herbário

enquanto os meninos jogam ao berlinde à beira da estrada ou em becos sem saída, protegidos pelo muro, as meninas em flor saltibanqueiam em campos de ensimesmamento. escrevem diários secretos que trancam à chave e guardam na gaveta, por entre raminhos de alfazema. coleccionam asas de insecto e folhas de árvore. prendem as pétalas entre o polegar e o indicador e, com jeitinho, arrancam-nas - uma por uma, até ficar uma única lágrima branca pendente de um olhinho amarelo que nela adivinha a desdita.
há dias de amores impossíveis e outros de paixões inadmissíveis. um coração de vidro também estremece, e faz tanto barulho quando cai no chão. recolho os cacos e embrulho-nos num quadradinho de tecido cor de ameixa preta. aperto-o com a palma da mão.

3 de maio de 2006

Terapêutica Vocabular de Substituição

tal como a transição entre sentimentos e sensações - menos abstractas, mais localizadas e delimitadas no tempo - também no processo de escrita se operam substituições de importância não menos avultada do ponto de vista do desenvolvimento (ou regressão ou involução, diz lá) da personalidade.
quando já não se tem idade para decifrar enigmas, deslindam-se casos - neste caso, o princípio equalizador é o raciocínio orientado para a resolução de problemas. quando se perde a capacidade de sonhar, fantasia-se. quando estrelas se apagam, carrega-se no interruptor para acender a lâmpada. a alma é uma entidade que cedo se esvai em alternativas: mente, psique, cérebro, encéfalo e - porque não? - cachimónia. (afinal, "par délicatesse j'ai perdu ma vie".)
mas voltando aos sentimentos e às sensações: estas são "revólveres de trazer por casa", fáceis de guardar em qualquer bolsinho interior do casaco, e mesmo o transporte é prático. os sentimentos são um almoço pesado.

2 de maio de 2006

Ilegível

«Assim, os vivos também se tornam fantasmas: bato-lhes
à porta da alma, vagueio num descampado de sentimentos,
chamo-os - e vejo-os partir. Construo a solidão
com os pedaços das imagens que me deixaram. Ergo
edifícios a partir de memórias, de palavras, de gestos que
ficaram das nossas conversas, quando o tempo se reduzia
ao instante em que vivíamos, e nenhum futuro nos impunha
a sua sombra. Agora, porém, a que estação te irei buscar? Em
que bando de jardim te irei surpreender, olhando essa manhã
que marca a separação dos amantes? Limito-me a esperar
que esta porta se abra, uma vez mais, e a primavera
entre para este quarto onde a noite se instalou.»
Nuno Júdice, «Carta de Orfeu a Eurídice» in Pedro, Lembrando Inês

1 de maio de 2006

Rorschach

Escreva você mesmo a história desta boneca.

Praia da Rocha, 28 de Abril de 2006