31 de julho de 2006

Em Junho

no meu Jardim


ela tem vontade de fechar as persianas, abrir as janelas e deixar o vento entrar.
eu tenho a sensação de não escrever há três dias.
ela saltitou quando o pássaro levantou voo e lhe fez cócegas na mão.
eu ouvia-lhe os prantos à noitinha - ela rogava à virgem que a protegesse dos olhares indiferentes. má sorte - meteu-se noutra e não houve virgem que lhe valesse. perguntou-lhe onde ia e a que horas voltava e ele respondeu-lhe que, mais tarde, se serviria dela.
trauteio mentalmente outra música:
«continuas a envelhecer. começas a evocar os lugares onde estiveste, as estradas por onde o suor passou.
e tantas vezes os evocas que se tornam lugares-comuns e deixas de procurar outra casa para férias.»

24 de julho de 2006

Chez Moi

« O candeeiro aceso

é uma bailarina amarela
nos bicos dos pés

e toda despida da cinta para baixo...
não há nada mais nu

que um candeeiro aceso
sem abat-jour. »


Almada Negreiros, in Chez Moi

14 de julho de 2006

Les Fleurs du Mal

Mal-Me-Queres / As Flores do Mal 2006
(André Valverde, Joana Borges, Pedro Jorge, Samuel Traquina e Teresa Martins)

Mal-Me-Queres / As Flores do Mal enreda-se num paradigma do paradoxo: longe da obscenidade urbana, uma quase-criança-quase-mulher corropia descalça por entre as páginas, trepa as palavras e senta-se nos poemas porque nem a criança, nem a mulher, nem os versos daninhos temem a convenção.

13 de julho de 2006

Princesa-de-Tolstoi

«A princesa era uma senhora de cerca de quarenta e cinco anos, baixa, magra e colérica. Os olhos, miudinhos e cinzento-esverdeados, pouco simpáticos, contrastavam com a boca pequena e em forma de coração.»
Leão Tolstoi, in A Infância
ao iniciar assim a descrição da princesa, tolstoi descompromete-se da figura prototípica dos contos de fadas - aquela que aguarda numa inquietude enclausurada a chegada de um príncipe que não sabe se virá. que nunca tem mais de dezasseis anos, curvilínea, alta e fleumática. os olhos, contemplativos e azuis-acinzentados, concordam com a boca que sorri.
a princesa de tolstoi, quiçá histerectomizada, tem o ventre em tábua rasa e bate nos filhos - facto que atemoriza e atormentará o pequeno narrador.

11 de julho de 2006

Bazar-de-Gente

naquele dia, não lhe ocorrera. no entanto, agora era evidente que então não havia nada mais narrável do que o que se passara, de facto.

sem ornamentos

..................................sem imagens acessórias
........como bibelots ...............................
...........................incoerentes
................................................................empatando as prateleiras

assim foi:
passearam de mãos dadas e trocaram moradas numa estação de metro.
despediram-se à pressa e voltaram a ser desconhecidos numa montra de bazar-de-gente.

3 de julho de 2006

Wilhelm

um exército contra-Reichiano marca o passo na apatia do consumo.
a mulher curvada no fundo das escadas grita:
- ESCUTA, ZÉ NINGUÉM!
- mas ninguém lhe pergunta como foi ali parar, quem teceu o xaile que traz ao ombro, quantos filhos teve e quantos lhe morreram, quantos namorados lhe passaram os olhos pelo peito descoberto.