31 de julho de 2004

Ecce Homo

NIILISMO s. masc. (do latim nihil, nada) 1. Negação dos valores intelectuais e morais comuns a um grupo social; recusa do ideal colectivo desse grupo. 2. Tendência revolucionária da intelligentsia russa na década de 1860, caracterizada pela rejeição dos valores da geração anterior.

«Deus», «imortalidade da alma», «salvação», «além», são simples conceitos aos quais não dediquei atenção, ou tempo, nem sequer em criança – talvez eu não fosse já bastante infantil para tal? Não considero o ateísmo como resultado, e ainda menos como um facto; para mim, o ateísmo é forma estrutural de ser. Sou demasiado curioso, demasiado problemático, demasiado orgulhoso, para contentar-me com respostas grosseiras. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para nós outros, pensadores: no fundo, é simplesmente grosseira proibição. É o mesmo que dizer-nos: não deveis pensar!...
(Friedrich Nietzsche)
tacteio a possibilidade de uma infinidade de mundos fictícios, mas todos me parecem demasiado reais. ensaio a minha presença em cada um desses quartos.

30 de julho de 2004

Lisboa Pombalina

A persistência das ruas de uma Lisboa pombalina em confronto com o esquecimento de hábitos seculares. A possibilidade de uma fuga para o abstracto, já ali naquela esquina. O cheiro quente, acre e plebeu que sobe no ar, da porta de uma taberna que serve a devassidão dissimulada ao pequeno almoço. Mulheres com uma maquilhagem bizarra, já ali na outra esquina – afinal, nem todos os hábitos seculares se perderam. Personagens queirosianos fora do espaço e do tempo. A Rua das Flores sem flores e sem vida pulsátil, uns quantos estabelecimentos de conveniência, os alfarrabistas um bocadinho mais acima na Rua do Alecrim. Os candeeiros e o burburinho dos mercados, os filmes a preto e branco da infância do cinema, um Santana alcoolizado que desiste de monologar com o candeeiro, ignora-o com um ar vingativo e segue para a próxima esquina. O rio para onde me esqueci de olhar, os lugares onde ele parou.
(Blackout.)
Escrevo o teu nome nas paredes das ruas da cidade. Aos tropeções de ternura procuro o teu rosto em todos os corpos que dormem na clandestinidade. Quando amanhecer pode ser tarde, porque talvez nenhum rosto seja o teu. Se deixarem as luzes apagadas e a noite acesa vou acabar por escrever este poema mesmo sem o teu rosto, que pode habitar qualquer corpo, ainda que diferente de ti.

Poema em Linha Recta

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos mossos de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto neste mundo.
...
Arre, estou farto de semi-deuses!
Onde é que há gente no mundo?
 
(Álvaro de Campos)

29 de julho de 2004

Fuga

Talvez se possa começar assim: a noite desce sobre a cidade. O nevoeiro fino, peganhento, sobe do rio.
Ou então, assim: ele vira-se na cama e acorda. Alguém está deitado a seu lado, morto. E, enquanto olha o morto, diz em voz alta:
- Sacana! Matou-se sem dizer nada.
A luz talvez entre por uma fresta aberta nas cortinas. Uma gota de suor acender-se-à na sua testa, e escorregará como um pirilampo até ao queixo.
Não. O melhor é pôr de lado, imediatamente, esta história.
 
Recomeço: estou num café e escuto:
- Pois é...imagina que levava os amantes ao zoo...
Mas o seguimento perde-se no quinto whisky.
 
(Al Berto)

La Folie

que diriam eles de uma lucidez que saísse às ruas em pijama? as chinelas são macias e quentes. mas ela está descalça, debaixo do frio dos cobertores que não aquecem. fechar os olhos, correr as pestanas sobre a possibilidade interdita de ser livre. sócrates não foi capaz de se parir, morreu cedo demais, com a verdade atravessada nas goelas. querem vocês enveredar pela maiêutica autodidacta? lá fora estão os conspiradores de mascarilha, e trazem a lei para amordaçar a loucura. mas não sabem que a loucura usa gravata e se confunde na multidão? que diriam eles de uma lucidez que saísse às ruas em pijama?
 
"le suicide est-il un épisode spécifique de la folie?"
(Émile Durkheim)

28 de julho de 2004

Inadiável

o discurso do método: o perigo da progressiva aproximação entre a literatura e a matemática. é que eles estão cansados de reticências e de romances. porém, os tratados filosóficos não têm qualquer encanto formal – trata-se de uma obsessiva submissão do concreto ao abstracto. da norma sintáctica à mecanização do verbo. a infracção das regras é necessária à estruturação de uma expressão individualizada. que essa ambiciosa utopia idealizada desça sobre a sensação escrita.

o truque da literatura existencialista é baralhar-te. o caos vocabular a idolatria sensual: tudo se cruza no mesmo personagem confuso e ilegível. cidade adormecida. o chão frio sob os meus pés descalços. tropecei nos restos de ternura nocturna. a tua rua. a tua porta. a cama está desfeita. abracei a almofada – ainda está quente. as palavras e o erotismo precisam desse destinatário íntimo.
 
como combater a inadiável decrepitude do intimismo?...

Prelúdio

Primeiro alinhas as canetas de tinta permanente. Uma com tinta negra, outra com tinta azul. A terceira está vazia.
Sentas-te e debruças-te para o caderno de capa preta. O silência arde por toda a casa. Abres o caderno onde sepultaste, há dias, umas quantas palavras. E ao abri-lo caem as imagens sobre a mesa. O caderno volta a ficar branco - o caderno, a nocturna memória do mundo, a vida. Tudo branco como a morte.

Deitas-te, então, ao lado do morto que ainda não és. E dele se liberta um anjo mudo que vem habitar o teu corpo.
 
(Al Berto)