31 de março de 2006

Santiago

de compostela.
da almirante reis, a aorta de olissipo, até à minha travessa - em registo anacrónico.
em pezinhos de lã, para não acordar os meninos que ainda conseguem dormir debaixo de fogo cruzado. (« - não temas a guerra civil, ainda assim ganharás o teu pão pelas esfarrapadelas dos feridos.») três ruas de janelas adormecidas ou dormentes - não percebo onde vão buscar esses disparates de que o crime urge na urbe. foi então que me ocorreu, santiago de compostela, avó não chegaste a levar-me lá e agoras estás outra vez a aguardar o fim nas hemorragias que desfazem outra avó. o brasileiro de camisa indiscreta que bichana incongruências convenientemente imperceptíveis. as escadas que descem para a rua dos tiros, que nunca me atrevi a pisar mas que todos os dias via da marquise - o cheiro insuportável que emanam os canos quando abril passa a ser maio maduro. (« - perdeste o tino outra vez. falta de chá é um deficit de decência moral.») chega-me saber que ainda posso sentir, ainda que fora de todas as leis, ainda que gesto algum abale a indiferença gerada por um contrato pré-estabelecido. boneca de collants turquesa chama o meu nome do outro lado da estação de metro. junto a palma das mãos, depois os dedos, «D» é de dormir.

30 de março de 2006

Antropofagia

« - Inteligência... Espírito... Progresso... A syvuda da curvatura do espaço humano evoluindo para a descida. O retorno ao abominável. Evolução e involução. Quando cremos subir, descemos. E vice-versa. Percebe-se isto ao atingirmos o estado de clarividência que já é o delírio da febre de entender. Mas, ai de nós... Nesse ponto alcançamos o vórtice da ascensão, o cume de onde nos debruçamos sobre o abismo e o nosso fulgor e o da estrela que vai cair. O espírito obscurece e o ignóbil ilumina-se. É o deslumbramento da nossa miséria. E assim, o espírito corre para a antropofagia tal como esta corre para o espírito. Não entretenho abstracções. Sei por experiência própria que o último escalão da inteligência - falo da inteligência como de uma voluntária actividade poética que aspira a apanhar em falso a ironia de nascermos - é a pancada do irracional. Um alçapão que se abre sobre o canibalismo.»
Natália Correia, in A Madona

28 de março de 2006

Carta ao Pai

Em Nome de Electra
porque os outros se mascaram, mas tu não.

porque cedo me ensinaste que entre o sujeito e o predicado não cabe uma vírgula, mais tarde - mas não tarde demais - deduzi que o sujeito se define pela acção. é assim, não é? (ainda não vendi o corpo ao homem que tem o teu nome na alma. aos que tentam comprá-lo, exijo como moeda de troca instantes de veneração depois de eu contar o teu episódio da Metrópole.) é por isso que não posso deixar que a interpretação dos factos por outrem se sobreponha à minha representação. a mãe contou-me que choraste no funeral do Sr. Gilberto. foram cravos vermelhos que deixaste cair, não foram? a mãe deve ter pensado que eram gotinhas nos olhos, que disparate. e lembras-te das tardes de família em que nos refugiávamos no carro, tu a escreveres no teu bloco-de-notas-de-jornalista as estórias de bonecas feias que eu ditava e eu a ilustrá-las - curioso como, já nessa altura, a minha representação do corpo humano era mais pormenorizada do que a tua. ainda assim valorizava os teus rabiscos. (de cada vez que dislumbro esse nome numa alma diferente da tua, deixo de ter corpo para vender. quero fugir e abraçar-me nela. e saber que vais continuar.)

26 de março de 2006

Aqui Onde o Amor Acontece

aqui onde isso do amor ainda pode acontecer, na poesia sul-americana. o início de uma história. as estrofes seguintes aparecerão depois - um dia depois do outro, como não pode subsistir o que os move.

mientras almorzaban por primera vez
ella muy lenta y él no tanto
y hablaban con sospechosa objetividad
de grandes temas en dos volúmenes
su sonrisa, la de ella,
era como un augurio o una fábula
su mirada, la de él, tomaba nota
de cómo eran sus ojos, los de ella,
pero sus palabras, las de él,
no se enteraban de esa dulce encuesta

Mario Benedetti, in Los Formales y el Frío

25 de março de 2006

Pela Voz Contrafeita da Poesia

«yo soy poeta /señor / y usted debe saber que los poetas / vivimos a la vuelta de este mundo / claro que usted quizá no tenga tiempo / para tener paciencia / pero debe conocer que en el fondo / yo no creo en la política»
Mario Benedetti, in Interview (Poemas del hoyporhoy)



25 de Março de 2006, 16 horas. Jorge Falé e Paulo Reis na Sala de Leitura («a sala dos catraios!») da Biblioteca Municipal de Alcobaça (BMA) em «A Poesia Acontece» - sessão de leitura interactiva e dinâmica de poesia. Ou «um exercício de sedução: (...) chamar as pessoas à poesia e não escorraçá-las da palavra dita» - nas palavras do Jorge. Esta iniciativa foi uma organização conjunta do Núcleo de Literatura da Associação Pouco de Branco e da BMA. Com o objectivo de provar, com a ajuda do savoir faire dos intervenientes, que «um recital de poesia não tem que ser monocórdico, filosófico ou ataráctico».

um comentário na primeira pessoa:

numa fase da minha pós-adolescência em que a poesia é das poucas ficções humanas que detém ainda a capacidade de me fazer chorar, o puto da fila da frente, com os seus óculos rectangulares de aros vermelhos no nariz e os dentes da frente ligeiramente afastados, riu despejadamente, como um copo entornado. e riu porque as cartas de amor são, de facto, ridículas. é este o tipo de expressividade - o tal savoir faire dos intervenientes - que faz uma criança de 6 anos compreender o significado da palavra exdrúxulo. foi nesse momento que tive vontade de - das duas uma: ou baixar o limiar emocional e poder chorar por outras ficções humanas (talvez essas que ridicularizam as epístolas) ou de ver aqueles tipos encasacados, com um cachecol branco vagamente eclesíastico pelos ombros, da perspectiva daquele miúdo de óculos rectangulares de aros vermelhos. mais vale uma miss na mão do que duas a voar - optei pelos olhos da criança.

passado aquele momento crucial em que os aplausos deixam de ser politicamente correctos e passam a ser sinceramente convictos, os óculos enterraram-se mais no meu nariz. foi Alberto Pimenta - e não quero deixar de citar o verso que resume o que nos faz mover: JÁ TENTASTE PRATICAR O TUDO NÃO FAZENDO NADA?. bem e mal, isso são outras histórias. foi Alexandre O'Neill, e novamente o ridículo. desta vez o ridículo das mulheres na praia, gritando pelos filhos - prodigalizando-os com sanduíches de areia - e berrando com os maridos. Mário Cesariny e Manuel Alegre - não gravei na memória nenhum verso. em contrapartida recordo o último verso de um poema chamado Autópsia. permitam-me omiti-lo. e outros...
mais tarde, na mesa do café (entre o chá preto, os cappucinos e cigarros clandestinos e os malfadados bolos de noz da Dona Céu), lamentou-se o esquecimento dos autores sul-americanos nos nossos hábitos de leitura. falou-se em García Marquez e Pablo Neruda - os homens cujos depoimentos deixei no cemitério de raparigas. saúdo agora um desconhecido uruguaio que o Jorge e o Paulo me deram hoje a conhecer - Mario Benedetti (com certeza não é assim que se escreve), o homem das velhinhas democráticas - enquanto houver televisão, mudanças NÃO! a propósito da tradução, foi improvisada pelo Jorge. isto porque a única tradução existente estava na posse de um senhor que deixou durante anos em cima da mesa de cabeceira o copo por onde a falecida bebia água. e não conseguiu recuperar a tradução depois da sua morte porque afinal é verdade que a saudade mata. a propósito da versão original, não metia a palavra televisão, mas sim uma rádio de que não fixei o nome. a propósito do autor, tem um outro texto chamado «Los Formales y el Frío».
e recordo ainda Sophia - porque os outros se mascaram mas tu não. tu, entidade inexplicável.

24 de março de 2006

Cemitério (cont.)

«Desta vez despistar-te-ei - jurei a mim mesma. - Estou resolvida a pertencer-me. Para tanto, cultivarei a sabedoria da traição. Tornar-me-ei nesse ser inviólável em que a mulher se converte, usando o velho talismã das mentiras. Estou farta da moralidade das nossas verdades. Foi ela que nos perdeu. Matou o nosso amor com o veneno do desencanto. A provecta imoralidade do adultério! Eis no que talvez consista a chave das aprazíveis relações amorosas.»
Natália Correia, in A Madona
Cemitério (continuação)
Encruzilhadas
o mesmo gesto que outrora os noivos repetiam - o pas de deux do solícito antebraço que auxilia a manga do casaco a ajustar-se ao seu ombro, menina - a estação repousa agora um imperceptível sinal no ângulo em que o ramo se une ao tronco. «- uma flor branca muito pequenina» - disseste, numa manhã de janeiro. a flor branca emerge geralmente do ramo mais frágil, mas não do troço que suporta as divergências. (és talvez representação e síntese e talvez irrealizável enquanto entidade abstracta. sabes como me aprazem os preâmbulos - até à possibilidade cronologicamente improvável de os perpetuar antes do âmbulo.) a primeira vez que se acendeu em mim uma candeia de curiosidade pelo teu corpo, levavas a cabeça tapada com um chapéu de chuva e - o que me permitiu identificar o objecto da minha curiosidade, aquela saia das riscas diagonais. descias. do outro lado da estrada, eu subia apressadamente e sem chapéu. soube mais tarde que nesse dia me viste e me perdeste para os quartos inabitados ao fundo do corredor das minhas comoções - essas divisões soturnas que ocupas agora, onde barba azul escondia também as suas vivas aprisionadas. esta outra rapariga estava também condenada a uma morte melancólica.

20 de março de 2006

Le Troisiéme Sexe

«Ao nomear esse tão típico espécime do terceiro sexo, era inevitável a cómica opção pelo pronome feminino, dado que nos seus requebros e travesti, Joséphine quintessenciava uma feminilidade que nenhuma mulher seria capaz de assumir sob pena de se converter numa anacrónica puppet do cinema expressionista dos anos 20
Natália Correia, in A Madona
então é isso, faz-me lembrar a simone. só não percebo por que insulta as pequenas que levam o jean-paul debaixo do braço.

19 de março de 2006

Cemitério

«- Sabes, minha filha? São uns porcos. Essa história das mulheres honestas foram eles que inventaram porque é cómodo ter em casa uma mulher de quem não se gosta. De quem eles gostam é das outras, das levianas, e tu hás-de ser leviana porque antes isso do que ser uma mulher de quem não se gosta.»
Natália Correia, in A Madona
os livros vão-se amontoando em cima da mesa de cabeceira, porque em determinado momento decidi começar a ler um mas passados alguns dias me apaixonei por outro. (é uma espécie de cemitério de raparigas – a primeira, a das ancas magnificamente curvilíneas, depois a outra cujo busto era uma ode à contemplação, entretanto aquela com voz de rouxinol mas que trocava as sílabas dos monossílabos, por momentos os olhos transparentes que de manhã se transformavam em esferas de vidro baço) alguns conseguem transitar para o tapete, por terem suscitado em mim esse amor cujo modo aniquila o tempo e o lugar e deixa marcas no fundo das costas. (- «não percebo por que deitam tanta terra em cima dos mortos.») por alguma razão, não consigo aquietar-me na continuidade de uma narrativa.

17 de março de 2006

Vento e Movimentos

quis a imprevisibilidade da forma que acabassem os quatro à roda de uma mesa, confessando em tom despreocupado, desventuras, angústias e devaneios:

- "e o erotismo, senhores, e o erotismo?"

foi então que o som de tachos e panelas se sobrepôs às vozes e deixei de ouvir o que diziam. mesmo a tempo do veredicto:

- "quanto a mim, já não acredito que as histórias de amor sejam possíveis. acredito no vento e nos movimentos, mas as folhas e os papéis acabam por parar ou continuam a mover-se sempre à mesma velocidade, pela lei da inércia. e é nesta lucidez nihilista que quero que as minhas mãos procurem as outras. porque as ligações colapsam quando atingem o ponto de tensão máxima." - rematou, sobre a mesa iluminada com sombras de objectos inesperados.

[e ainda, entre a lâmina de uma colher e o bordo inofensivo de uma chávena, a dúvida indignada de um texto teu que não cheguei a ver, R..]

14 de março de 2006

IMPÉRIO (I - A Porta)

[NOTA: inclui esta nota no início do texto porque senão não ias ter paciência de chegar ao fim. esta primeira parte é dedicada a ti, irmã de armas, que abriste a porta do armazém ainda de cimento, que em breve terá vidro.]
entrei. - depois de atravessar a porta que marcou a minha primeira infância (por dar para a sala de tesouros tão inesperados como as chávenas chinesas com senhoras nuas no fundo) e depois desapareceu para agora voltar a ser a brecha para uma outra realidade dispersa. a porta é na esquina no edifício, por baixo de uma varanda que em tempos dizia «João Martins - Mediador de Seguros - IMPÉRIO». como todos os escritórios, sede de corrupção e local de práticas sexuais socialmente pouco ortodoxas e, mais pontualmente, capela do (mais jurídico do que) sagrado sacramento que cruzou duas linhas paralelas que se aproximavam perigosamente da meia-idade e que, dois anos mais tarde (seis anos depois do vermelho de setenta e nove), numa noite de quinta-feira-sexta-feira de novembro, poucas horas depois de rebentarem as águas à mulher que podia ter sido a Luísa do António Gedeão, viriam a sobrepor-se no primeiro choro do narrador.

8 de março de 2006

Contact Improvisation

«- ainda bem que me pergunta!» - nem todas as questões merecem como réplica esta permissão convidativa. bem como nem todas as partituras têm um carácter fascista. modos de representação na dança contemporânea - e porque não meta-analisar (não na acepção estatística do termo), em torno de um desses três eixos, a relação de um corpo com o membro-fantasma? talvez deva substituir a partícula membro por uma outra que não seja restritiva a prolongamento exofítico somático - isto se quiser falar de uma nona vértebra cervical ou desse dimensionalmente insignificante vaso pulsátil instalado no hipocampo de uma percentagem significativa da população humana. mas não, não na acepção estatística do termo. não menos digno de registo: a experiência passada é, mais precisamente, o compasso de uma valsa lenta; a mobilidade do observador em torno do palco; a abolição da quarta parede.

7 de março de 2006

«- Até Já»

imagino-te fora do carro, a andar de um lado para o outro. eu sei, não passa de uma elaboração mental: na realidade, estás sentado no carro com esse ar (tão teu) de quem tem medo de ser visto - ou apenas não quer ser notado. não acendes um cigarro. a acção é simples: telefonas-me, só para saberes se estou bem. é coisa que, na generalidade dos casos, me irrita. não tenho frio, nem fome, nem febre, e destas oscilações de humor todos nós padecemos, em maior ou em menor grau. mas até gosto quando és tu a fazer isso - principalmente quando o fazes antes de entrares no túnel antes da minha luz. sorrio brevemente antes de atender, atendo, e o inesperado acontece: ao meu "então?!" - interrogativo e exclamativo, quase indignado - sobrepõe-se o teu "então?!" - e então sorrio novamente. tu sabes que só estou bem aonde não estou e só quero ir aonde não vou. mas, desta vez, também não é o caso. estou bem. e gosto que ligues para saber. apesar de ser uma pessoa "não muito dedicada à causa de viver", aguardo ainda o terceiro sinal. e, teimosa, há coisas que não quero que me expliquem.

entretanto, vou no eléctrico a cantar aquela música dos rádio macau - e acendo mais um cigarro, invento mil ideais.

5 de março de 2006

Contas e Contas

Alguém que acorde esse país
Que pegue fogo aos alibis
De quem pensa que o dinheiro
Se gasta primeiro
Que o amor

(José Mário Branco, de "As Contas de Deus" em Resistir é Vencer)

4 de março de 2006

Lama

numa mesa de esplanada numa praça alentejana, por entre copos a tocarem-se num hino aos maus exemplos, projectos mais tarde realizáveis e sorrisos travessos de meninas com amigos imaginários (nós ou ela, tanto me faz) e - já em viagem - essa estranha sensação de vitória trazida sempre que ouço aquela música

"se me quiseres voltar a ver, é lá contigo. (...) se quiseres ir [ou vir?] tomar chá, é lá contigo."